SAIR OU NÃO SAIR, DA SUA IGREJA

É mesmo necessário que haja divisões entre vós, para que se tornem conhecidos aqueles que de entre vós resistem a esta provação.” (1ª Coríntios 11,19)

Neste “Tempo de Turbulências” da Igreja Ortodoxa, muitos cristãos Ortodoxos, particularmente os do Patriarcado de Moscou, estão ponderando mudar de “jurisdições” ou afastar-se completamente da igreja. Considero a passagem acima citada útil neste contexto, porque me faz recordar que o nosso terrível estado de coisas na igreja não é nada novo, nem sequer incomum. É inerente à realidade histórica que é “Igreja” ou “ekklesia” (do verbo grego “ekkaleo”, que significa “chamar”, de modo que, como Igreja, somos aqueles “chamados” por Deus e estamos respondendo a esse chamado, de acordo com as nossas várias vocações). Hoje somos “chamados” ou desafiados de uma forma especial, a redescobrir o que é verdadeiramente “Igreja”, e quem realmente somos, como Igreja. Agora é um tempo “apocalíptico” para a nossa Igreja, no sentido literal da palavra “apocalíptico”, que significa “revelador”. O que nos está sendo revelado, antes de mais nada, é o que “Igreja” é, e o que não é. Em segundo lugar, “nós” estamos sendo revelados ou “tornados conhecidos”, como diz o santo Apóstolo, quanto à nossa fidelidade, como Igreja, ou como membros da mesma.

Durante muitos séculos, nós na(s) Igreja(s) Ortodoxa(s) temos cada vez mais “episcopalizado” a nossa visão da Igreja, reduzindo-a a uma coisa definida pelos feitos, ditos e territórios geográficos/canônicos dos bispos. Ao mesmo tempo, nós, tanto os leigos como o “baixo” clero, temos permanecido em grande parte apenas como uma espécie de plateia de todos os movimentos dos bispos, como se não fôssemos igualmente responsáveis por carregar a cruz do ser Igreja. Escrevi a minha dissertação de doutorado sobre esta questão, da “episcopização” gradual da Igreja Ortodoxa no Tardio e Pós-Bizâncio, como demonstrado no desenvolvimento da liturgia hierárquica bizantina nas tradições litúrgicas grega, quiviana e moscovita. Ou seja, é uma questão com a qual tenho vindo a lidar há anos. Agora, no nosso Tempo de Turbulências, penso que o problema com uma visão “episcopalizada” da Igreja está sendo revelado de forma mais pungente. Está desmoronando-se, como um castelo de cartas, à medida que nos apressamos em mudar de “jurisdição”, para uma em que o(s) bispo(s) estão comportando-se melhor do que a nossa; ou estamos mantendo-nos fora desta tempestade e em silêncio, em casa ou (se ainda formos à igreja) dentro da nossa paróquia. Não estou criticando nenhuma destas estratégias de sobrevivência a curto prazo na Igreja Ortodoxa de hoje, por sinal, mas para a nossa sobrevivência a longo prazo como Igreja, penso que precisamos de repensar a nossa compreensão do que é “Igreja”, para que possamos crescer, em vez de sermos diminuídos, como Igreja. Seremos diminuídos, penso eu, se não conseguirmos responder ao desafio ou crise que temos em mãos, de uma forma produtiva. E penso que a “forma produtiva” de responder é aprofundar a nossa compreensão do que é “Igreja”, e do nosso papel dignificante nela, em vez de nos afastarmos desse papel.

O que é “Igreja”? Nas Sagradas Escrituras, é frequentemente comparada a um casamento ou a uma festa de casamento (Efésios 5,25ss; Mateus 25,1ss; etc). O Mistério/Sacramento da Igreja e o Mistério/Sacramento do Matrimônio (chamado “Coroação” na tradição Ortodoxa) são ambos sacramentos da unidade; da unidade muitas vezes difícil. Pensemos nisso. Quando somos batizados na Igreja (ao sermos imersos na morte e sepultamento de Cristo, e depois sairmos das águas do batismo para uma nova vida n’Ele), ou somos “coroados” (como mártires!) num casamento, somos “sacrificados” ou “tornados santos” (porque “sacrificado”, das palavras latinas sacer + facere, significa “tornar santo”). Deixamo-nos, voluntariamente, morrer para o nosso “eu” de certa forma, nestes dois Mistérios/Sacramentos, a fim de nos juntarmos a uma certa, maior do que nós próprios, Unidade. Isto torna-nos santos, esta unidade “sacrificial”. Por “santo” quero dizer aquele aspecto mistificante da “santidade” do nosso Deus Triuno, Que é a fonte da “santidade”, como o “(Que é) Santo”. Porque Ele “é” em comunhão, dentro da Santíssima Trindade, em vez de se isolar ou ficar por si só. Na Sua existência atemporal e imutável.

Mas a nossa existência não é atemporal nem imutável, neste “mundo”. Vivemos o tempo e a mudança, pelo que a nossa comunhão(ões) e comunidades e também os nossos laços conjugais por vezes rompem, com ou sem a nossa própria culpabilidade por esse desenvolvimento. A Igreja Ortodoxa, ao contrário da Igreja Católica Romana, no caso do casamento, permite o divórcio, em certos casos, e não apenas no caso de adultério. Apesar de Mateus 5,31s, onde Jesus diz: “Também foi dito: ‘Aquele que se divorciar da sua mulher, dê-lhe documento de divórcio’. Eu, porém, digo-vos: ‘Aquele que se divorciar da sua mulher — exceto em caso de porneia [imoralidade sexual] — expõe-na a adultério, e quem casar com a divorciada comete adultério’”. Eis um exemplo da abordagem “não” fundamentalista da Igreja Ortodoxa à Escritura, e da consciência da realidade histórica, como a realidade da nossa ruptura humana e a nossa incapacidade, em alguns casos, de continuar em relações rompidas; quando a nossa ruptura não pode levar adiante a ruptura de outro. Não precisamos de continuar, digamos, em uma relação/casamento abusivo. Sugerirei, parenteticamente, que a abertura da Igreja Ortodoxa a “este mundo” também está expressa na sua aceitação de padres casados. A nossa Igreja permite que os seus homens ordenados sejam “casados” não só com a Igreja, mas também com mulheres não ordenadas. Isto é uma coisa extraordinária, se pensarmos bem. Mas não posso desenvolver este tema aqui.

O que quero desenvolver é como a permissão da Igreja Ortodoxa para o divórcio, em alguns casos, se relaciona com o “divórcio” de um cristão Ortodoxo da sua paróquia-igreja, digamos, no nosso tempo, quando decidimos mudar de “jurisdições”. Quero salientar que existe também uma permissão para isto, na tradição Ortodoxa, porque o sacramento/mistério da Igreja “funciona” como o sacramento do Matrimônio. MAS: O “divórcio” (da própria comunidade eclesiástica) não pode ser feito de ânimo leve, tal como o divórcio não pode ser feito de ânimo leve, como todos sabem. Porque é muitas vezes devastador, para todos os envolvidos. “Pôr para fora”, e contribuir sacrificialmente para curar a relação, é algo para o qual nós, como Igreja, poderíamos fazer melhor em contribuir. Mas a nossa Igreja não é boa servindo nem aos casamentos desfeitos nem aos divorciados, — mas esse é também um tema à parte, sobre o qual não posso escrever aqui.

Concluindo, quero dizer algumas palavras em apoio do “pôr para fora”, dentro da própria comunidade eclesiástica, neste “Tempo de Turbulências”. Eu, por exemplo, não vou sair da minha “jurisdição”, que por acaso é a ROCOR (a Igreja Ortodoxa Russa fora da Rússia). Por que é que eu “não vou” sair, mesmo quando comemoramos o Patriarca Cirilo e muitos dos nossos clérigos se simpatizam com o Putinismo? Porque eu amo a minha Igreja. Essa é a minha melhor resposta. Sinto-me bastante devastada por toda esta situação, e sinto-me traída, pelo completo fracasso de alguns dos meus “padres” em discernir a verdade desta guerra horrível na Ucrânia. Não consegui publicar as minhas reflexões habituais sobre as Escrituras, nas redes sociais, nem atualizei o nosso site coffeewithsistervassa.com, desde que a guerra começou. Tenho estado sem palavras, francamente, e em vez disso tenho-me concentrado em ajudar uma família refugiada ucraniana aqui em Viena, o que tem sido uma grande bênção para mim; esta oportunidade de ajudar de alguma forma, tem-me curado. E à medida que vou seguindo adiante, vejo a minha agora mais difícil vocação como testemunha da verdade dentro da minha amada Igreja, por muito insignificante que esse testemunho seja, ou quão desconfortável para mim, ou se isso é importante para alguém. Eu poderia simplesmente sair, mas não penso, no meu caso, que deixar o meu “casamento” com esta Igreja seja justificado. Penso que Deus me chama ao amor, e ao testemunho verdadeiro, à minha Igreja-família, e é aí que eu permanecerei. Também adoto a promessa de São Paulo, citada no início desta postagem, de que eu poderia tornar-me um dos “aprovados” ou em grego “dokimoi”, se me mantiver na verdade neste momento de divisões. Obrigado a todos aqueles que leram isto até o fim. “Amemo-nos uns aos outros, para que confessemos em unidade de espírito: o Pai e o Filho e o Espírito Santo!”.

Versão brasileira: João Antunes

© 2022, Ir. Vassa Larin
www.coffeewithsistervassa.com