A Santa Virgem Megalomártir Bárbara, hoje celebrada no Calendário Juliano Tradicional, foi decapitada por seu próprio pai. Ele era um pagão rico e muito possessivo a respeito de sua única filha, ao ponto de trancá-la em uma torre, para protegê-la do mundo. No entanto, ela se tornou cristã, libertando-se assim espiritualmente de seu pai biológico, e assim ele a denunciou às autoridades e finalmente a decapitou ele mesmo. Logo depois, ele foi atingido por um raio e morreu. É um fato curioso que, por causa disso, Santa Bárbara tornou-se tradicionalmente conhecida como a santa padroeira de todos aqueles que lidam com armas de fogo, explosivos e outras coisas relacionadas ao fogo.
Este ano, quando muitas vezes fiquei sem palavras, como muitos “pais” da minha Igreja Ortodoxa Russa estão apoiando o genocídio que está ocorrendo na Ucrânia, e as santas relíquias de Santa Bárbara estão numa catedral central em Kyiv, sua história ressoa em meu coração de uma maneira especial. Ela me recorda que somos livres, tendo sido batizados na liberdade do Espírito, e tendo recebido “o poder de se tornarem filhos de Deus” (João 1,12b), mesmo que alguns de nossos atuais “pais” da igreja tenham erguido uma torre e estejam tentando nos trancar todos nela. Quer dizer, eles construíram sua própria torre a partir de uma ideologia feita pelo homem em vez de construir a Igreja, e nós parecemos aprisionados nela. Parecemos presos, porque devemos rezar por um “grande mestre e pai” nosso (“великом господине и отце нашем”), que incentiva nosso povo a ir matar, e ser morto, nesta guerra criminosa, igualando esta insanidade com o sacrifício do Filho de Deus.
Mas não estamos presos, assim como Santa Bárbara não estava presa, mesmo enquanto vivia na torre, e enquanto chamava seu pai de “pai”. Ele tinha esse título, no sentido terreno, mas não no sentido de que só Deus o tem, como a Fonte de toda paternidade. Quando os seres humanos são chamados de “pai”, como era o pai de Santa Bárbara, eles são chamados a participar da paternidade de Deus, como parte de sua vocação. Mas o título em si não significa que eles vivam à altura desta importante vocação, assim como o título “grande mestre” diz que este ser humano é chamado a ser um a quem os outros escutam, na medida em que ele é um vaso da palavra e da vontade de Deus. Como posso rezar por ele desta maneira, e com estes títulos, se ele se tornou um vaso não de Deus, mas de outra pessoa?
Não posso responder a esta pergunta a ninguém, mas eis o que faço, quando ouço esta comemoração na igreja: 1. Lamento por ele, e por todos nós, que ele não esteja cumprindo com sua vocação, seja como “grande mestre” ou como “pai”. É bom e abençoado chorar, quando o luto é merecido, como nos recorda nosso Senhor: “Felizes os que choram, porque serão consolados” (Mateus 5,4); 2. Rezo para que nós, como Igreja, cresçamos a discernir o mal do bem, em nossa atual “Ortodoxia”, e que todos nós, inclusive eu, e todos os nossos “pais”, assumamos nossa cruz e nos arrependamos de nossos pecados e crimes, históricos e contemporâneos, em verdadeira liberdade e honestidade; e 3. Recordo que não sou eu quem compõe as fórmulas de comemoração, incluindo a do patriarca. No entanto, posso interpretar a fórmula de comemoração como a compreendo, como a compartilhei aqui. E assim permaneço livre para ir à minha igreja, sem me separar da minha família que é minha igreja, que não pertence a nenhum “pai” aqui embaixo, mas Àquele que está no céu. Permaneçamos todos livres, meus amigos, pelas orações da Santa Virgem Megalomártir Bárbara: “Honremos a Santa Bárbara; / pois a honradíssima rompeu as redes do inimigo / e como um pássaro escapou delas / pela ajuda e proteção da Cruz” (Tropário à Santa Virgem Megalomártir Bárbara).
Versão brasileira: João Antunes
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