“Ouvistes o que foi dito aos antigos: ‘Não matarás. Aquele que matar terá de responder em juízo’. Eu, porém, digo-vos: ‘Quem se irritar contra o seu irmão será réu perante o tribunal; quem lhe chamar imbecil será réu diante do Conselho; e quem lhe chamar louco será réu da Geena do fogo’.” (Mateus 5,21s)
Estas palavras, nas quais o nosso Senhor parece estar a equiparar a raiva “sem causa”, e os insultos contra um “irmão”, ao assassinato, nunca fizeram realmente sentido para mim. Até a guerra na Ucrânia.
Muita retórica e insultos contra “o Ocidente” e a Ucrânia precederam a guerra. Mas foi apenas quando os tanques russos começaram a avançar contra a Ucrânia, e as bombas russas e outras agressões militares começaram maciçamente a assassinar, a violar a população civil e a forçar (milhões) à emigração, que reconheci o poder assassino de toda a retórica que antecedeu à guerra; o poder assassino da retórica abstrata contra seres humanos concretos.
Antes da guerra, muitos de nós cristãos no Ocidente ouvimos (e alguns de nós também simpatizamos com) a retórica e insultos do Kremlin contra “o Ocidente”; a sua perda de “valores familiares tradicionais” e as suas “paradas gay”. A perspectiva de a Ucrânia “cair” na esfera de influência do Ocidente parecia, para muitos de nós, uma coisa má, devido a estes conceitos abstratos de “valores familiares tradicionais”, que soam como uma coisa boa, e fenômenos como “paradas gay”, que soam como uma espécie de coisa má, para alguns de nós.
Mas (e aqui está o meu ponto principal): Será que algum de nós pensou que as nossas palavras e preocupações sobre “valores familiares tradicionais” e “paradas gay” exigiam ou justificavam a morte? Quero dizer, matar massas de ucranianos, destruir as suas cidades e casas, e forçar mais de cinco milhões deles a emigrar, destruindo totalmente as suas vidas e o seu país? Será isso que queríamos dizer, quando nos envolvemos em discussões sobre tudo isto, que apoiaríamos a matança, e a matança em massa, se os nossos “valores familiares tradicionais” não fossem adotados pelos ucranianos, ou se as “paradas gay” não fossem aí proibidas? Penso que subestimamos o poder assassino das nossas “guerras culturais”, que no Ocidente são mais ou menos acomodadas com segurança pelos controles e equilíbrios das sociedades democráticas, e pelas nossas liberdades de expressão, de imprensa e de reunião, mas que em alguns setores do Oriente não democrático são resolvidos através da força autocrática e militar.
Mas voltemos às palavras do nosso Senhor, acima citadas, nas quais Ele associa insultos ou raiva contra o “irmão”, ao assassinato. As palavras do Senhor recordam-nos que as nossas palavras e argumentos sobre coisas como “paradas gay” ou “valores familiares tradicionais”, na medida em que podem levar a assassinatos concretos e reais dos nossos irmãos (digamos, na Ucrânia), têm um poder assassino. Porque as nossas discussões sobre tais coisas não são apenas abstratas; são na realidade dirigidas contra pessoas concretas, os gays e os ucranianos e os americanos e os suecos e os britânicos e os austríacos e os alemães e os franceses e os letões e os espanhóis e os israelitas e os “outros” restantes, que não adotam os “valores tradicionais da família” do regime de Putin. Como tal, as nossas palavras e a nossa raiva contra estas pessoas são potencialmente assassinas para elas. E isso não é correto, no que diz respeito ao nosso Senhor. Matá-los não está bem, nem esmagá-los com insultos e palavras assassinas. E parte-me o coração, que qualquer um de nós na Igreja Ortodoxa veja toda esta matança de um nosso “irmão” na Ucrânia como justificada, depois de tão audaciosamente o termos chamado de “louco”.
Versão brasileira: João Antunes
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